3.10.06

Laços de Família

Tocava Marisa Monte naquela noite de frio típico, em Turim. O cheiro de costela cozinhando invadia o quarto, pairando como perfume forte de inverno, tornava cada vez mais peculiar a cena do filho deitado no chão em posição complexa – quase uma ásana!, segurando uma chave-alen, enquanto seu pai escolhia minuciosamente, com raciocínio matemático, o parafuso que se adequaria à fenda, com precisão curúrgica: aquele monte amorfo de metais se tornaria, em minutos, um beliche. A mulher trazia um copo de cerveja para seu marido e a filha mantinha-se absorta à cena familiar, concentrada em fechar o velcro da jaqueta, e a observar as orquídeas na tela do seu computador. Todo o apartamento 14 do Corso Vitorio Emamuelle vibrava com energia bucólica, não pela familiaridade da imitação do Brasil, mas pela família que se unia pacífica e sagradamente no quarto dos filhos, naquela noite profana em que deixaram de reunir-se no salão do reino, para reunirem as peças do beliche.

Sim, estava frio lá fora – Ceres não mais aguentava de saudades de Perséfone!, mas o calor dos corações daquela família era suficiente para escaldar todo o apartamento. Ouso dizer que seria capaz de adiar todo o inverno! Materna como convém a uma fêmea, a mulher desdobrava-se, ora na cozinha, procurando pelo ponto certo da costela, ora no volume e temperatura ideais da cerveja servida ao marido que bebia pseudo-displicentemente enquanto juntava as peças a serem parafusadas pelo filho - como quem unia não tubos de metal, mas como quem metaforizava em cada um dos quatro pilares beliche, um membro da sua familia que dependia da sua força para manterem-se unidos; o filho, por sua vez, grave, fazia da sua missão de apertar os parafusos, não apenas parte do que seria, em minutos, um beliche, mas na tarefa mais precisa e complexa do mundo, que era aplaudida com aleluias, entre cliques distraídos de mouse – ambos reverberantes, a cada junta que não mais se soltaria: era o retrato de uma família feliz. A paz fora restabelecida em comunhão, na partilha da montagem do beliche.

A Arca da Aliaça fora consagrada: nada parecia poder desatar os nós daqueles laços de família. Marisa ainda cantava, mas o cenário agora era a cozinha, conde mesmos pilares equilibravam suavemente, em volta da mesa, uma felicidade efêmera, estontiante como o cheiro da costela cozida. O bezerro fora sacrificado em prol da glória daquela família, que era a mesma de sempre, consumando à mesa, em santa ceia, aquela paz que, de tão inesperada, chegava a doer. Doer de felicidade. E como num milagre, cada membro daquela família repetia, ritualisticamente, cada passo de todos os dia, mas hoje, especialmente, inspirados pelo regozijo da montagem do beliche, nada era esdruchulo, então o filho comia manejando os talheres com calma e cuidado, levando a carne suavemente ate sua boca, mordendo a ponta do garfo e lambendo os lábios enquanto preparava outra e outra e outra garfada; a filha segurava os ossos da costela com as maos e mordia fortemente a carne suculenta, ininterruptamente, até que o caldo grosso escorresse pelos cantos da boca; o pai orgulhoso, de peito estufado, sorvendo a cerveja e comendo o jantar que a sua esposa, ha quase vinte e cinco anos, sagradamente cozinhava, na sua funçao prazerosa de prover, dava graças por todos estarem juntos e compartilhando.

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