1.1.09

Vestindo burca em Londres



Dirigindo de volta pra casa vi uma mulher no banco de trás de um carro, vestindo uma burca. Eram duas horas da madrugada e ela também fora pega pelo tráfego, e como todos – exceto pelos pedestres que pareciam brincar com a nossa desgraça, estava com uma feição que misturava cara de poucos amigos com sono atrasado. Houve um momento em que os nossos olhos se cruzaram e foi então que eu percebi que celebrar a virada do ano é exatamente como vestir uma burca em Londres!
A burca daquela mulher não é nada diferente da bíblia que a protestante carrega debaixo do braço, da culpa que o cristão traz dentro de si ou daquele satanista que é ateu (graças a Deus): a religião está em todo lugar e cerca as pessoas mesmo que subliminarmente. Alguns se libertam, outros precisam expiar o mau-caratismo que eles sabem que têm, mas atribuem ao Deus – que os fez assim e que os testa 24 horas por dia; outros precisam acreditar em algo que seria, antes de tudo, uma anti-afirmação (não confunda com negação). Mas o que conecta todos nós é o fato de que nenhum foi capaz de se libertar completamente: todos mantém um ou outro ritual. Por exemplo, a bendita da mulher veio da puta-que-a-pariu e está em Londres vestindo uma burca. Eu comemorei a virada do ano...
Desde quando o tempo (se é que isso existe) “reseta” à meia-noite do dia 31 de dezembro? Gregório devia ser um clássico anal pra criar o conceito de que tudo poderia ser recomeçado do zero depois de 12 meses – como numa faxina gigantesca onde, além de se jogar fora o que não interessa, pode re-mobiliar a casa com produtos novinhos: as resoluções! Ah, as resoluções de ano novo... Dieta, trabalho novo, metas novas, vida nova, enfim. Mas o problema é o fato de que se sabe que no “ano que vem” tem mais, e nenhuma delas – as resoluções, vai adiante.
Eu vejo a celebração do ano novo como uma abstração do rebanho, que mais uma vez não sabe o que está acontecendo, mas segue o fluxo. “Mas é um motivo pra as pessoas se divertirem” – disse o Richard. E eu respondi: “e por um acaso as pessoas não podem se divertir todos os outros dias? Ou elas precisam de um motivo?” Natal, aniversário, dia dos pais, férias, dia do pagamento ou o ano-novo: tentativa de tornar a felicidade um ato esporádico – ou mesmo inalcançável. É, mais uma vez, o ser humano tentando esquecer-se da morte, dividindo o tempo em fatias digeríveis, por simples e puro medo de viver.

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