28.11.06

Semente

Sua jugular pulsava aceleradamente – a pressão estava nas alturas. Era sempre assim quando se contrariava... O ar pesado não era medido pela abstinência de palavras, mas pela profusão das que acabara de proferir à sua filha. O ar pesado quase cegava-o e pelo olhar fixo e seu rosto cabisbaixo, via-se que o quase já era um quase tudo. Pensou em repetir as duras palavras por uma terceira ou quarta vez, mas achou que, por hora seu silêncio era suficiente, e piscou, engolindo saliva. Mordeu os lábios e pensou em voz alta, mas assim como desordenadamente pensou, balbuciou um amontoado atonal de murmúrios, que terminou com um suspiro profundo. Pela primeira vez colocava a mão por entre os cabelos crespos, apoiando-se pelo cotovelo, na parede e fechava os olhos. Quis chorar uma lágrima, mas decidira, com certeza de provedor, de mastro que era, fingir que coçava os olhos enquanto levantava as sobrancelhas fartas e chupava os dentes em sinal de protesto só porque sabia que sua filha não gostava, e como sempre, fazia quando podia, não porque se esquecia, mas porque sabia que a filha não gostava. Sempre esperava uma resposta. Ensaiava sozinho diante do espelho a contra-resposta que daria a sua filha, sempre muito astuta, quando lhe colocasse contra a parede. "Se fosse na época do meu pai, você levaria uma surra", praguejou, mas não pelo agora, e sim pela lembrança de como era astuta e sempre tinha uma resposta na ponta da lingua, aquela sua filha tão eloqüente. "Eloqüente até demais", pensou... ou disse? por um instante não soube se pronunciara ou se falara a última sentença – mas pouco importava porque a mocidade de hoje também lhe fazia evolir. Sempre achou que se evoluia com os tempos, na medida em que pudesse evoluir; afinal, que culpa tinha o metal na terra, que o homem ainda não o havia encontrado? - pensava. Sentou-se. Balançava as pernas neuroticamente. Levantou-se assim que percebeu – não queria demonstrar nenhum sinal de fraqueza. "Não" – pensou, mais uma vez sem saber se falara ou se apenas pensara, mas só para ter certeza, repetiu e fez questão de ouvir cada uma das três letras: n-ã-o. Neste ponto franziu a testa e fez um bico, como quem pensava em uma solução, mas logo olhou fixo o chão e balançou a cabeça em negação, e repetiu, desta vez prestando atenção no silêncio: "não"! De repente lembou-se de quando ela nascera. Era uma boneca. Somente naquele momento pensou que ela poderia ter sentido falta de um irmão quando criança. Não era completamente errado afirmar que era um pouco culpa do trabalho e do tempo que já não tinha para dar para a sua filha.. e dividi-lo com outra criança seria crueldade, afinal, um pai tem que estar presente, ser uma figura para se temer, para se amar, para se ter! Mas por outro lado – ou talvez mesmo por conseqüência deste – é dificil ser provedor, mastro nas horas em que apenas se quer deitar no colo da mãe e chorar. Tem dias que nem eu quero ser um rapazinho... mas por outro lado percebeu que Maria era o nome da mãe de Deus, e que Deus tem somente uma mãe, portanto aquele nome a fadara a ser filha única. Nunca acreditou que os nomes pdoeriam ter força, mas seu apelido fazia muito sentido naquela tarde. E teve uma tontura e entendeu! Tudo fez sentido! Tudo se encaixou tão facilmente.... era tudo tão óbvio, de repente ele esboçou um sorriso – contido, claro – não era hora para bipolaridades! Mas aquele anti-sorriso fitava não a filha, mas a sua barriga. Na verdade via além da barriga. Ele via a desnecessidade da esperança na vida. E dava aleluias por ter percebido que a esperança é o ato de adiar o ininterrupto, porque, na prática, só existe o presente! As horas não existiam, os dias não existiam, os anos não existiam da forma como acreditava. Até agora tudo o que ele fizera consistia em creditar não no tempo, mas a máscara que aprendera a atribuir ao tempo, e que o tempo mesmo nunca tinha parado. Entendeu que a sua filha não ia crescer, mas que ela era ela agora. Nem o passado e nem o futuro eram palpáveis, enfim, mas sempre e para sempre, o presente. Minha filha nunca tivera antes, quase 30 anos, mas sempre foi muita filha, astuta e eloqüente... sempre no presente! Percebeu que a esperança era adiar o presente e mascará-lo... Boquiaberto e meio zonzo percebeu que precisaria assumir a sua carência e esquecer, de vez, a esperança. Entendeu que, se era preciso, tinha-se. E que quanto mais se precisava, mais se fazia, e mais tinha-se. E viu Deus na barriga da sua filha, e deu graças porque o precisar nunca se acaba.

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