9.12.06

ASSOMBRADO!

Na madrugada, as já vastas ruas de Governador Valadares ficam ainda mais largas quando cobertas com a luz laranja das lâmpadas de mercúrio. É solitário sim, mas não dói; eu até gosto das lâmpadas de mercúrio porque elas não são tão explicitamente brancas. As lâmpadas de mercúrio desnudam a verdade, mas dão um quê de mistério e charme a ela. ...e é assim que eu gosto da verdade. E como eu dizia, as ruas vazias madrugada afora desenham sombras e eu fico brincando de adivinhar o que elas querem ser. Tenho pena dos paralelepípedos que queriam ser postes, ou do asfalto que queria ser morada. Pobres dos assombrados, porque eles não têm imaginação para sonhar.

Eu não olho para a minha sombra desde... eu não me lembro quando foi a última vez que eu olhei pra minha sombra! Estou pasmo! Tentei olhar para ela agora, mas fiquei com medo! Foi o medo puro. E esse medo me fez entender o que é medo, meu Deus! É o medo da verdade – o arquétipo do medo, meu Deus! Medo é negação, é preguiça. Medo é uma forma de recusar a verdade! Insisti: não queria fugir da verdade (ou do que eu acho que seja verdade) mas desisti rapidamente porque eu comecei a devagar e a pensar na forma com que a minha sombra queria parecer hoje. Foi aí que me espantei de surpresa: eu não sei com o que a minha sombra se parece hoje; e de tão misteriosa, ela não me dá pistas. Estou pasmo com a nossa displicência – minha e de minha sombra. Afinal, quem deixou de procurar quem? Tentei olhar de relance, mas a sombra se escondeu por detrás de outra sombra... mas tive certeza de que ela está viva porque eu acenei e ela acenou de volta. Estava ela realmente ali o tempo todo ou será que ela realmente só me procura quando eu estou diante da luz laranja? Quem é a minha sombra? Meu Deus, só agora a cidade me conta seus segredos. Somente agora que eu não mais vivo aqui e que por isso, não sou mais ameaça familiar. Não sou mais um perigo latente – alguém que pode gritar a qualquer momento e denunciar a real intenção dos objetos que as pessoas insistem em chamar de inanimados... Que lindo, meu Deus: essa é a minha vida sem mim! Num universo paralelo eu não fui, e exatamente desse jeito este “eu” está. A vida segue adiante... e sem mim! Mas será que ele tem consciência disso?

Na noite passada quando eu desliguei o carro e olhei pra minha casa, eu sorri. E ela sorriu de volta – pro meu espanto! Ela sorriu de volta porque ela não é mais minha – e ela sabia que eu já percebia isso! Minha casa também se mostrou pra mim e quis que eu a conhecesse por inteiro. Ela não tinha mais medo de mim e queria me falar tudo... absolutamente tudo, como quem está prestes a morrer. E nessa ânsia de quem ia morrer eu fiz um retrato da minha casa que é assim: Minha casa tem cheiro de não sei o que, mas é esse não sei o que me intriga: é cheiro de antítese e de contradição. E olhando para essa fotografia eu senti balaústres. Balaústres de noite, com a luz da lua refletindo no cinza dos contornos – teria eu certeza de que não seria outro poste? Não sei, mas sei que eram brilhantes olhos úmidos... eu podia sentir o sal desses olhos, meu Deus! Daí o portão rangeu e eu subi pelos degraus de ardósia porcamente recortados, sem me apoiar no corrimão. Abri a porta. Foi aí que eu senti o cheiro da minha casa, seu buquê – sua real identidade... cheiro de 20 anos, cheiro de saudade. O silêncio nessa casa é pulsante como um coração sadio – por isso a casa é morna. Eu me perco em casa! Por conta dessa fotografia eu percebi o jogo confuso de portas na casa... Que acessibilidade! Será por causa das portas que a casa é tão acolhedora? As portas são a continuidade, meu Deus! As portas são a anti-rotina! Estou realmente intrigado: vivi vinte anos da minha vida nesta casa e percebi que não sei quantas placas de ardósia temos no chão! Estou boquiaberto: a casa é viva! Ela é viva e fala comigo...e eu entendo! Que maravilhosa simbiose, meu Deus! Estamos todos vivos: eu, você e a casa. Sim, porque alma existe independente de alguém lá a colocar. A alma escolhe o corpo. E agora eu quero a alma de cada paralelepípedo da cidade. (Quero mesmo?)

Eu vejo tudo de um ângulo diferente agora – está tudo transversal, meu Deus! O sentido de tudo me escapa depois de alguns segundos e eu fico com essa cara abobada de quem sabe, mas não pode falar. Cara de segredo! Essa repentina crise de sinceridade da cidade me fez perceber que, apesar de a mesma, ela não é mais minha. Sim, porque ela me revelou seu segredo, meu Deus! Nela estão as mesmas pessoas com os mesmos problemas. Até eu descobri o meu mesmo aqui na cidade e – pasmo, me acostumei. Eu me acostumei, mas não quero a facilidade de me repetir. Meu Deus, como é fácil me repetir! Digo, eu me repito todos os dias, mas tem algo de sórdido nessa repetição... e eu me sinto sujo. Excitantemente sujo, quer dizer. Culpa... a culpa é como um vinho seco... seco e tinto... que me enche a boca docemente, mas se revela forte na língua e desce esôfago abaixo deixando o rastro do calor. Com ele eu viajo dimensões afora, infinitamente: vivo vidas, tenho idéias, arquiteto planos, embebedo-me de possibilidades... e gozo palavras!

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